terça-feira, 9 de abril de 2013

Cara, decote e voz

Volto a publicar este post de 2012, agora que soube 
pelos jornais que a grande Sara Montiel nos deixou.

SARA MONTIEL

ou Sarita Montiel


Coisas boas em jornais

Texto de
Manuel S. Fonseca
Expresso, 21-03-1992


TINHA truques. Na Cinemateca, numa das maiores apoteoses com que o público de Lisboa brindou uma estrela convidada, Sara Montiel, 64 anos, muito pouco vestida, e toda em rosa, num estilo que Almodóvar copia em «mui-to-po-bre», contou um dos seus truques favoritos. Filmava com Gary Coper. A cena era iluminada por um gigantesco projector de arco. Os olhos de Cooper eram só um traço, incapazes de se abrirem, tão violenta era a luz. Sara, pelo contrário, lá estava de olho arregalado. Cooper quis saber como é que ela conseguia. «Tenho um truque», disse ela. «Diz-me qual é», pediu-lhe o galã. «Não é de dizer, é de fazer», explicou ela, levando-o para um canto. Puxou de um frasquinho e deitou umas gotas em cada um dos olhos de Gary Cooper. «Anestésico», segredou Sarita a um Cooper que, durante quatro horas, passou a ter faróis em lugar de olhos.


«Na Cinemateca, numa das maiores apoteoses com que o público de Lisboa 
brindou uma estrela convidada, Sara Montiel, 64 anos, muito pouco vestida» 
Foto copiada do Expresso.

A carreira de Sara Montiel deve-se começar a ver pelo meio. Os primeiros anos foram, com efeito, anos de chover no molhado, filmando para poder continuar a levar o pão à boca. De Ti Quiero Para Mi (1944), a sua estreia aos 16 anos de idade, até Pequñeces (1950), nem ela pareceu interessar a câmara, nem os espectadores viram nela, e no que dela se podia ver, motivos para sobressalto.
Essa primeira fase espanhola já estaria esquecida e enterrada, se o caso de popularidade de Sanita não tivesse explodido, inopinadamente, na fase que se iniciou com El Ultimo Cuplé. Maltratada e mal paga, Sarita Montiel deixou, em 1950, a ingrata, espúria e mesquinha Espanha, procurando emprego e papéis mais adequados no então florescente cinema mexicano. Começou com Necessito Dinero e acabou com Yo no Creo en los Hombres, passando por Cárcel de Mujeres, títulos suficientemente sugestivos para descrever o tipo de ficção populista e as personagens primárias que incarnou.

Capa da «plaquete», editada pela Cinemateca em homenagem a Sara Montiel em 1992.

Foi por esses anos, de 50 a 54, que a sua presença começou a ganhar na tela parte das qualidades eróticas que seriam trampolim para a fama ibérica e latino-americana, qualidades que entretanto pode exercitar em Hollywood, primeiro no conhecido Vera Cruz, de Robert Aldrich, ao lado de Burt Lancaster e Gary Cooper, e logo a seguir em Serenade, de Anthony Mann (com o qual se casou), e em Run of The Arrow, de Samuel Fuller. O sol da Califórnia foi, todavia, de pouca dura.
Em Espanha lembraram-se, então, dela, convidando-a, em 1957, para um filme que ninguém queria fazer e muito menos alguém queria pagar. O que ninguém adivinhava é que a carreira de Sarita Montiel estava, nesse momento, naquele ponto exacto onde repousa toda a virtude, a meio. E ainda menos poderiam adivinhar que esse filme, El Último Cuplé, parecendo ser durante a rodagem quase uma humilhação para quem o fazia, se iria converter no maior sucesso popular do cinema espanhol, obrigando a apreciar a nova luz tudo o que Sarita tinha feito para trás e, sobretudo, criando expectativas para tudo o que a actriz iria fazer daí em diante.



Sara Montiel cantando Quizàs, Quizàs, Quizàs no filme 
Noches de Casablanca (1963) com Maurice Ronet.


Cara, decote e voz foram os três vértices do sucesso de Sarita, por obra e graça de El Ultimo Cuplé, convertida em avatar do erotismo ibero-americano, para uso de quarentões a cauterizar casamentos no mínimo enfadonhos. La Violetera, Carmen la de Ronda, Mi Ultimo Tango e La Reina del Chantecler tornaram-na, no final dos anos 50 e no começo da década de 60, objecto de devoção e de peregrinação das classes mais desfavorecidas, nas tintas para os dramas ideológicos ou de acção social que a sociedade espanhola politizada vivia. Hoje, seja como fenómeno «camp» seja por recuperação cinéfila, mais ou menos historicista, Sara, a bela Sara, voltou a despertar as velhas «loucuras de amor». «Esa mujer»!

Manuel S. Fonseca
Expresso, 21-03-1992



Excerto da entrevista do Expresso a Sara Montiel, pouco 

antes da homenagem da Cinemateca Portuguesa em 1992.



EXPRESSO — Sempre proclamou em público as suas ideias políticas de esquerda?
SARA MONTIEL — Nunca fui muito dada a provocações gratuitas. Mas recordo que no princípio dos anos 60, com Franco ainda bem vivo, Manuel Vazquez Montalbán fez-me uma entrevista que quase nos levou  à prisão! Tivemos então sérios problemas, só porque eu havia manifestado ideias e preocupações simplesmente liberais! De todos os modos, nunca me considerei uma mulher política. Aliás, voto socialista, mas nunca tive nem terei o «carnet» do PSOE.
EXPRESSO — Como grande vedeta espanhola e universal, terá sido recebida ou convidada alguma vez pelo general Franco?
SARA MONTIEL — Uma só vez e chegou! Foi durante um encontro colectivo de artistas, numa daquelas sinistras festas-recepções do regime franquista. Não troquei uma única palavra com o ditador, somente um frio aperto de mão. De qualquer maneira, era um regime que não tinha nada a ver com o mundo da cultura e do espectáculo — um mundo que, segundo Franco, só podia estar «infectado» de intelectuais liberais e progressistas, ou seja, de «comunistas». Sinto-me feliz por ter assistido à morte desse regime e por viver enfim numa Espanha democrática.
EXPRESSO — Até que ponto se identifica com a Espanha folclórica, a Espanha de Carmen, simbolizada de algum modo por Lola Flores?
SARA MONTIEL — Se tenho inveja de alguém, esse alguém é Lola Flores! E um autêntico monumento nacional, um, exemplo único, inimitável. Ninguém lhe chega aos calcanhares! A Pantoja? Essa não serviria sequer para lhe limpar os sapatos! São artistas como Lola Flores que fazem a grandeza de um país como Espanha, com uma personalidade forte e ímpar, o que não impede que seja também um país moderno, dinâmico e com uma boa imagem no exterior. Pretender que Lola Flores dá uma imagem negativa de Espanha é uma estupidez.
EXPRESSO — Como recebeu a notícia da homenagem da Cinemateca Portuguesa à filmografia de Sara Montiel?
SARA MONTIEL — Com uma grande alegria. Com o meu marido Pepe Tous e com os realizadores do meu programa «Ven al Paralelo» na TVE2, procurámos logo conciliar as datas das gravações e dos ensaios com uma viagem a Lisboa, uma cidade pela qual tenho uma paixão particular. Sempre mantive uma estreita e secreta relação com Portugal, uma relação «underground». Não tive, infelizmente, grandes contactos com os meios artísticos portugueses, mas quando oiço Amália Rodrigues cantar o fado estremeço dos pés à cabeça!

Entrevista de José Alves em Madrid
Expresso Março 1992


Destaque na Visão, num trabalho sobre o cinema espanhol.



2 comentários:

  1. Cheguei a seu blog depois de ver um vídeo de seu canal no YouTube, por recomendação de um professor de história da arte. Gostei muito do blog, em especial do conteúdo sobre cinema, uma vez que eu mesma tenho um blog sobre cinema.
    Quanto a Sarita: uma perda triste, adorava sua voz!
    Abraços!
    Letícia

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