quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Gore Vidal - Entrevista

"Um escritor deve sempre dizer a verdade, a não ser que seja jornalista."
(Gore Vidal)

Coisas dos Deuses ou do Alzheimer, só ontem soube que Gore Vidal tinha falecido. Como é um dos escritores que eu mais gosto de ler e reler, quis aqui fazer um pequena homenagem; tinha uma série de fotos dos anos 60 da LIFE, mas, depois encontrei esta entrevista e decidi fazer o post juntando as duas coisas.

“O dia em que entrevistei o grande escritor 
Gore Vidal - e descobri que ele tem medo de elevador”
por 
Ricardo Setti

Ricardo Setti com Gore Vidal, no hotel Cá d’Oro, em São Paulo, para hora e meia de conversa. Gore Vidal se mostrava disposto e bem humorado. Texto e foto de em veja.abril.com.br

«Uma entrevista inédita feita há 23 anos com um grande escritor contemporâneo achada casualmente no fundo de um baú. Esta é a história da entrevista que se segue.»


(…) Um belo dia, chego à bela sucursal do Jornal do Brasil na Avenida Paulista, que depois teria a honra de dirigir, e recebo a ordem de meu chefe, o diretor Augusto Nunes:
– Setti, você vai entrevistar o Gore Vidal depois de amanhã.
Augusto tinha conseguido para o JB junto ao editor Luiz Schwarcz, da editora Companhia das Letras, então detentora de direitos sobre algumas obras de Gore Vidal no Brasil, uma das poucas entrevistas exclusivas que o escritor concederia no Brasil. Não sendo versado na obra de Vidal, embora tivesse lido alguns de seus livros, mergulhei em pesquisa, devorando tudo o que podia a respeito do escritor como preparação para a tarefa. Sendo Vidal um homem do mundo e um ser político por natureza – as famílias paterna e materna abrigaram políticos e ele próprio tentou ser deputado por Nova York e senador pela Califórnia nos anos 60 –, nove das 13 perguntas na época vindas a público no Jornal do Brasilacabaram versando sobre política, inclusive relações internacionais, pois estávamos em plena época de mudanças na até então pétrea, inamovível União Soviética.
A maior parte de seus conceitos sobre a literatura e o fazer literário, assim, não puderam ser aproveitados pela limitação insuperável do jornalismo pré-internet: o espaço disponível. Eles têm permanência, como se verá, mas não só isso: alguns dos temas políticos tratados são de uma impressionante atualidade, como a questão de, como quer Vidal, o “Império” americano, título aliás de um de seus romances, de 1987, tendo a história dos Estados Unidos como pano de fundo.

Dava a entrevista por perdida quando encontrei a fita gravada

Topei com a íntegra da entrevista que realizei com o escritor por um feliz, felicíssimo acaso ao promover, anos atrás, a organização dos arquivos de quase quatro décadas de carreira jornalística num recém-montado escritório particular. Tratava-se de uma fita gravada, por mim já dada como perdida, que encontrei misturada a dezenas de cassetes imprestáveis de música popular, prontamente lançados ao lixo.
A gravação com Vidal, porém, revelou-se miraculosamente audível. Foi realizada durante a movimentada visita – a única, até agora – do grande escritor ao Brasil em 1987, promovida pela editora Companhia das Letras, pelo jornal Folha de S. Paulo e pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Em uma semana entre São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro e Brasília, o eterno enfant terrible da literatura americana teve como cicerone em São Paulo um jovem de 23 anos responsável por indicações de livros estrangeiros e traduções para a Companhia das Letras e que futuramente, como colunista de VEJA, se tornaria ele próprio um enfant terrible: Diogo Mainardi, colunista de VEJA. No Rio, valeu-se da experiência e dos contatos do jornalista Sérgio Augusto. Vidal proferiu duas palestras, concedeu duas entrevistas coletivas e três individuais, divertiu-se em festas e jantares.
Um ritmo adequado a alguém polivalente como Eugene Luther Gore Vidal, seu nome na certidão de nascimento, titular de uma carreira de impressionante fecundidade, mais de 30 romances, uma autobiografia em dois volumes, uma coletânea de contos, seis peças de teatro, 24 roteiros de filmes e séries para cinema e TV – incluindo desde o épico Ben-Hur (1959), de William Wyler, em cujos créditos não aparece, ao menos remoto Dimenticare Palermo (1990), do diretor italiano Francesco Rosi –, numerosos livros de ensaios e mesmo duas dezenas de participações, como ator ou como ele próprio, em filmes de ficção e documentários.
A passagem pelo Brasil incluiu também, para Vidal, alguns contratempos. Convidado por conta própria pelo embaixador José Aparecido, assessor do presidente José Sarney, para um tête-à-tête em Brasília com seu chefe, também ele escritor, bateu com o nariz na porta porque Sarney estava irremediavelmente enredado em compromissos.
O visitante também precisou aturar cerimônias aborrecidas, como um interminável concerto de música erudita brasileira na reitoria da Unicamp, sob um calor insuportável, a que eu, estoicamente, também assisti. Uma coisa jeca, como que a provar para o grande homem que no Brasil também se fazia música de qualidade.
Mas ele não perdeu a verve. Ao me receber em sua suíte no hotel Cá d’Oro, em São Paulo, para hora e meia de conversa, Vidal se mostrava disposto e bem humorado.
Como sempre, viajava com Vidal, hospedando-se cada um em sua suíte, seu peculiar companheiro desde 1950, e que morreria em 2003, o discretíssio ex-publicitário Howard Austen, com passagens pela Broadway e pelo cinema, que atuava como uma espécie de gerente da vida do escritor.
Vidal, que é homossexual mas teve casos com mulheres, causaria espanto ao relevar no primeiro volume de suas memórias, Palimpsest — A Memoir, de 1995, publicado no Brasil como Palimpsesto no mesmo ano, que jamais teve sexo com Austen, ao lado do qual quer ser sepultado. E que, em todos seus incontáveis casos com outros homens, foi unicamente ativo.

Gore Vidal em sua casa junto do Rio Hudson em Nova York. 1960. 
Foto de Leonard Mccombe e LIFE Archive.

Parte da entrevista foi feita descendo escadas

Diferentemente de Vidal, homem de aparência máscula e porte físico avantajado, Austen, de aparência frágil, magro e sardento, tinha trejeitos efeminados. Quando eu e Diogo — que, uma vez feitas as apresentações, discretamente se retirou — e tocamos a campainha da suite de Vidal, onde Austen também estava naquele momento, ouvimos uma voz cantada, levemente aflautada avisar de dentro do quarto:
– Gooore, they’re heeeere! (“Gooore, eles chegaram!”).
O grande escritor parecia não ter grande confiança na tecnologia do Terceiro Mundo: incerto quanto ao impacto potencial dos elevadores brasileiros em sua controlada claustrofobia, preferiu, já no final da conversa, enfrentar oito andares de escadas rumo ao térreo, onde faria gravação de três minutos para uma emissora de TV.
Lá fui eu junto, escada abaixo, com o gravador ligado e fazendo perguntas. Voltamos pelo mesmo caminho, Vidal resfolegando enquanto respondia.
Leia a seguir a entrevista.

É o senhor quem escolhe seus temas ou, de alguma forma, eles o escolhem, eles se impõem ao escritor?

Bem, nunca é a mesma coisa. Eu produzo dois tipos de livros: reflexões e invenções. Prefiro as invenções porque todas elas são minhas. E ouço suas vozes. A voz de Myra Breckinridge eu nunca tinha ouvido antes [de escrever o livro com esse título, publicado em 1968]. Nem a voz de Duluth [1983], talvez minha invenção favorita. Nunca a tinha ouvido antes, e não tenho idéia de onde veio. Não sou assunto de mim mesmo, não escrevo sobre mim mesmo, não sou autobiográfico, e não tenho interesse por escritores desse tipo [como vimos na relação de suas obras, o autor viria a desmentir-se com a publicação oito anos depois, em 1995, do primeiro volume de suas memórias, Palimpsesto]. Entre outras características, isso me faz ser muito diferente da maioria dos escritores contemporâneos. As reflexões são de alguma forma escolhidas, como ocorre com minha tentativa de recuperar a história da República Americana desde a Revolução [1775-1783] até o presidente John Kennedy [1961-1963].
Não tencionava fazer isso. Comecei com Washington, D. C [1967], planejado para ser o último livro dessa série, então voltei no passado a Burr [1972], que é o começo. A ideia era descrever um país visto por uma família ao longo de duzentos anos.
Não posso dizer se expus tudo como queria, a história simplesmente veio à tona. Nunca sei se o que escrevo vai ou não ter um padrão no final. É justamente por isso que escrevo. Termino sem saber que caminho realmente queria ao começar. Assim, a idéia de um escritor esquemático é, para mim, uma contradição em termos.

O senhor já perdeu o controle de algum personagem?


O escritor muitas vezes não exerce qualquer controle sobre os personagens se está produzindo uma invenção. Só é possível esse controle em novela de televisão. Aí existem basicamente, digamos, dez enredos básicos. Você escolhe um deles e o recheia com personagens. Meus personagens são sobretudo vozes, que ouço, mas não vejo. As vozes falam e eu escuto, e elas continuam falando. É diferente dos romances históricos, as típicas cronicas americanas, como os chamamos. Nesses, eu crio pontos de vista, cada um dos personagens tem seu próprio estilo.
Tenho, claro, meus limites. Por exemplo, em Lincoln [1984], nunca penetro na mente do presidente [Abraham Lincoln] – não sou Shakespeare, embora esteja tentando ser… Penetro, no entanto, na mente da senhora Lincoln. É impertinente, mas ao mesmo tempo interessante.

Gore Vidal em sua casa junto do Rio Hudson em Nova York. 1960. 
Foto de Leonard Mccombe e LIFE Archive.

O senhor mencionou romances históricos. Falando deles, porque um ateu como o senhor acabou se interessando pela história do cristianismo como aparece em Juliano [1964]?

Não gosto do cristianismo, mas vim de uma tradição cristã – metade protestante, metade católica romana. Assim, conheço bem o cristianismo, e pude deixar minhas reflexões me conduzirem a Juliano, o Apóstata, durante cuja vida se inventou o cristianismo.
O cristianismo tal como o conhecemos não tem nada a ver com o [faz ar de desprezo] Novo Testamento, ou o Velho Testamento, mas foi o resultado de um certo número de encontros fechados entre um determinado número de bispos.
Quando eles finalmente chegaram à Santíssima Trindade – uma obra-prima capaz de acomodar todo mundo, como uma frente de partidos na Itália [risadas] –, perguntaram a São João Crisóstomo: “Mas como pode um Deus uno ser três pessoas distintas?” Ele respondeu: “Oh, é um Mistério tão grande… Não ousemos discuti-lo” [risadas].
Isso foi o máximo que fizeram em matéria de discussão teológica.

Para um ateu, o senhor escreveu um bocado sobre religião. Refiro-me também a Criação [1982].

Mesmo não sendo religioso, tenho interesse por religião. Está aí a origem de Criação. Sou fascinado pela religião do século V. Tentei descobrir, em Criação, como aconteceu de, num único século, ter sido pensado tudo de fundamental já cogitado pela raça humana, inclusive a teoria atómica, inventada por Demócrito.
Um homem do ano 75 d. C. podia ter encontrado Buda, Confúcio, Zoroastro, Sócrates. Obviamente não creio que, na vida real, qualquer pessoa pudesse ter conhecido os quatro, mas usei esse artifício, essa estrutura e fui então capaz de observar quatro culturas diferentes de um ponto de vista de um persa, em vez de seguir a tendência natural para um escritor ocidental e fazê-lo do ponto de vista de um grego.
Por isso, sou um herói dos iranianos estabelecidos nos Estados Unidos. Boa parte dos 600 ou 700 mil iranianos dos Estados Unidos vivem em Los Angeles, onde tenho uma casa. Um dia peguei um táxi para o Beverly Hilton Hotel, o motorista iraniano me reconheceu por causa de minhas aparições na TV e me disse: “O senhor não sabe como o admiramos na nossa comunidade, porque o senhor nos deu o ponto de vista persa – iraniano – e não aquele que sempre nos ensinaram, o dos gregos, nossos inimigos”.
Ele nem me cobrou os 17 dólares da corrida. Isto é que é admiração…

Qual imagina ser sua maior qualidade como escritor e, em sentido oposto, qual seria sua maior vulnerabilidade?

Não posso falar sobre forças e fraquezas. Então vamos falar sobre o que um escritor faz, ou acha que faz. Penso ter a habilidade de reflectir sobre coisas que não têm a ver comigo, a não ser intelectualmente. Isso me põe totalmente fora da tradição romântica que vem governando a literatura há 300 anos e que com certeza dirige a literatura latino-americana.
Isso não me coloca fora do realismo, mas me leva para longe do romance feito costumeiramente, [faz uma careta e imita, de forma caricata, o sotaque anasalado americano] “que é sobre casamento, e sobre como deixei minha mulher quando estava tentando uma carreira de professor e como conheci essa garota e como nós viajamos, e depois como conheci uns ingleses tão engraçados – ah, eles são tão engraçados, os ingleses”. Bem, não faço esse tipo de romance.

Seu diferencial, então, seria…

Tomemos, por exemplo, Duluth, de acordo com [o escritor italiano] Italo Calvino meu livro mais interessante. Calvino diz que conduzi todo o romance, o mega-romance, como ele chama, numa direção inteiramente nova.
Quando as pessoas morrem na minha imaginária cidade de Duluth – não a Duluth real, situada no norte dos Estados Unidos [no Estado de Minnesota], mas uma cidade na fronteira com o México sobre a qual existe um disco voador permanentemente estacionado, cuja porta nunca se abre e em que as pessoas vão perdendo o interesse.
Quando alguém morre, vai para uma série de TV chamada Duluth, cujos personagens são intercambiáveis e que permanece no ar o tempo todo. Acho que a fonte desse romance foi a Presidência de Ronald Reagan.

Como, assim? A história não parece ter nada a ver com a Presidência Reagan.

O sujeito assiste TV até tarde e de repente vê esse rapaz bem apessoado, em 1940, em histórias de amor da Warner Brothers. Na manhã seguinte, ele aparece já como um homem maduro na série para a TVDeath Valley Days. Depois, nos telejornais da noite, é um homem muito velho – e presidente dos Estados Unidos! E qual deles seria real? Este país é surrealista, está além da racionalidade. Pois bem, essa deve ter sido uma das raízes de Duluth. Para mim, os romances surgem assim.

Gore Vidal em sua casa junto do Rio Hudson em Nova York. 1960. 
Foto de Leonard Mccombe e LIFE Archive.

Por que o senhor escreve?

Já nasci escritor. Se você nasce escritor, você escreve. Você não escolhe. Eu preferiria muito mais ser político – ser, por exemplo, presidente dos Estados Unidos. Nasci numa daquelas famílias de onde os presidentes costumam vir. Mas não dá para fazer as duas coisas de forma efetiva. Quer dizer, se eu fosse um mau escritor como Winston Churchill, aí, sim, seria possível. Um escritor sério, porém, sempre deve dizer a verdade, e um político nunca pode entregar o jogo. São duas características que se chocam. Só fui político parte do tempo, mas tenho sido um escritor em tempo integral.

O senhor segue uma rotina como escritor, um método de trabalho?

Meu primeiro romance, Williwaw [1946], foi publicado quando eu tinha 20 anos, e escrito aos 19. Tentei cinco romances antes dos 14 anos. Aos dez anos, eu era poeta – muito ruim, na verdade, mas o fato é que não houve época de minha vida em que não tenha escrito. Portanto, não tenho mais idéia de como faço ou de como a coisa funciona. É mais ou menos como fazer amor. Se o sujeito insistir em saber como se dá uma ereção, vai acabar tendo um trabalhão para funcionar [risos].

Que livro lhe deu mais trabalho?

Cada um apresenta seus problemas. Não tenho nenhuma dificuldade com minhas invenções. Mas, em História, sou preciso na medida e no limite do possível. Para saber os detalhes, preciso fazer um bocado de pesquisa, e a faço sozinho. Então, quando o livro termina, é enviado a um historiador daquele período específico.
O editor paga a esse historiador para fazer uma revisão do livro e checar toda a história compreendida nele. Depois, ele me faz um relatório. Lincoln foi revisado pelo professor David Irving Donald, chefe do Departamento de História da Universidade Yale e um especialista na Guerra Civil Americana [1861-1865].
Ele simplesmente me dizia: “Isto está errado, é necessário mais informação naquilo, não estou certo de ter entendido corretamente o trecho tal”.

Alguns críticos americanos disseram que Lincoln não trouxe nada essencialmente novo sobre um presidente sobre o qual se escreveram cerca de cinco mil diferentes livros…

[Interrompendo] Metade do que a imprensa fala a meu respeito nos Estados Unidos é terrível. Escreva o que escrever, sou o pior escritor da América. Nós somos uma nação muito sectária, bêbada de religião, totalmente reacionária, que odeia quaisquer novas formas de ver as coisas. E eu sou o demônio, porque sou um intelectual que é também popular e não aceito os pontos de vista da classe dirigente.

Mas, de todo modo, qual foi a maior contribuição que o senhor julga ter trazido para a compreensão do presidente Abraham Lincoln?

Eu o passei em revista. Ele é um desconhecido! Os americanos não conhecem nada de História. Se conhecessem, não elegeriam gente como Ronald Reagan presidente. Nossas escolas entraram em colapso. Elas são um deserto!
O sistema educacional americano é o pior entre todos os das potências ocidentais. O pior! Os garotos americanos frequentemente não sabem ler nem escrever no final do secundário, quando completam 17 anos. No primeiro ano da universidade, eles precisam ser ensinados sobre coisas que deveriam saber aos 14 anos. Praticamente não se ensina História americana.
Mas existe nos Estados Unidos uma fome por História americana, e eu, tristemente, sou obrigado a fazer minha parte para satisfazê-la, porque caso contrário ninguém mais vai. Não quero sempre estar fazendo isso. Preferiria bem mais estar pensando em Duluth e em Myra Breckinridge.

E por que, em sua opinião, há esse vazio no ensino de História americana?

Trata-se de uma diretriz política. Quanto mais ignorante for o povo, e quanto mais condicionado for pela TV a se tornar consumista e trabalhador dócil, mais fácil será pegar um ator vazio – um dos homens mais ignorantes que já conheci – e fazer dele o presidente dos Estados Unidos.
Nunca na minha vida presenciei coisa mais cínica. Um homem completamente vazio. E isso só pode ocorrer quando você tem um povo sem um mínimo de formação.

Essa sua postura política lhe tem causado dissabores como escritor?

Claro. Falávamos do sistema educacional americano. Veja bem: em todos os Estados Unidos, há apenas 10 mil pessoas aprendendo o idioma japonês. No Japão, um terço da população aprende inglês, e um garoto de 14 ou 15 anos já sabe alguma coisa de inglês na escola. Comparado ao de países como o Japão, nosso sistema educacional está falido.
E então vem uma figura como eu, conhecida por causa da TV, e diz esse tipo de coisa. É por isso que eles gostariam de me ver fora de combate. Em certos períodos não consigo continuar, e a única coisa a fazer, então, é ficar assistindo certos jornalistas dizerem que mau sujeito eu sou, por não amar os Estados Unidos e o consumismo desenfreado como deveria.
Sempre me mantive à parte disso, nunca fiz o jogo de ninguém, exceto o de mim mesmo. Tenho levado professores de História pelo país afora à loucura, porque eles não podem impedir as pessoas de lerem meus livros.

E como esse antagonismo se revela na grande imprensa americana?

Veja o caso da revista Time, por exemplo. Eles vivem uma espécie de jogo de empurra comigo: ora me colocam na capa, ora me odeiam. Eles não são confiáveis [risos]. Quando do lançamento de Lincoln, a Newsweek decidiu fazer uma reportagem de capa comigo, Time descobriu, e duas semanas antes de o trabalho chegar às prateleiras, publicou um grande comentário dizendo, em linhas gerais, que o livro era um dos piores jamais escritos.
O autor era um tal de Paul Gray, que não leu o livro – ele não teve tempo para isso, todas as citações incluídas em seu texto estão nas primeiras dez páginas. Pois justamente ele tinha escrito uma reportagem de capa de Time a meu respeito anos antes, dizendo o quão magnífico eu era. O editor da área cultural da revista na época da resenha de Lincoln era um daqueles neoconservadores que realmente me odeiam.
Ele adicionou pessoalmente um parágrafo à matéria – fiquei sabendo de tudo por informações obtidas lá de dentro. Eles tentaram matar o livro. A editora Random House levou a coisa tão seriamente que pensou em processar a revista por restrição ao comércio e outros dispositivos permitidos pelas leis americanas. Eles acabaram não seguindo esse curso, Newsweek disse exatamente o contrário, e foi meu livro de maior sucesso até então.

Excetuado o caso de Time, como é sua relação com os críticos literários?

Só existem dez críticos nos Estados Unidos, e a maior parte deles não escreve para jornais… De todo modo, já passei o diabo nas mãos de resenhistas. Depois de A Cidade e o Pilar [1946], levei um gelo interminável do The New York Times, que em sua edição diária [Vidal exclui da afirmação o suplemento literário semanal do Times] não publicou uma palavra sobre cinco romances meus consecutivos. Em Time e em Newsweek, foram sete os livros que passaram em brancas nuvens. Isso com o tempo mudou. No caso de Lincoln, tive sorte porque vários bons historiadores falaram bem do romance. E nosso melhor crítico literário, Harold Bloom, de Yale, gostou muito do livro. Mas se você desse uma olhada nas críticas e resenhas pelo país afora, chegaria à conclusão de que sou um escritor deplorável. Os americanos são incapazes de distinguir um bom de um mau texto, e os resenhistas também não sabem a diferença.
Em geral, me acusam de não amar Jesus ou de não amar o capitalismo, veja só você. Toda essa gente tem razões mesquinhas.

 Gore Vidal em sua casa junto do Rio Hudson em Nova York. 1960. 
Fotos de Leonard Mccombe e LIFE Archive.


É por constatar essa situação que o senhor manifesta tanto interesse em tratar do poder em seus livros? Para explicá-lo?

Não tenho nenhum interesse em ser vítima ou em escrever sobre vítimas – embora, claro, em algum grau todos sejamos vítimas de uma forma ou de outra em nossa sociedade. A maior parte dos romancistas são vítimas e escrevem sobre vítimas. Não são capazes de entender quem são seus governantes nem quem é a classe dirigente.
E a classe dirigente americana é a mais esperta da história mundial. Os donos dos Estados Unidos são basicamente os mesmos há 200 anos. Alguns nomes mudaram, mas a proporção entre quem é dono e o restante ainda é a mesma.
Assim, o que faço é contar aos leitores quem são essas pessoas que mandam neles. E os leitores ficam fascinados, porque ninguém lhes fala disso na escola, na TV, na ficção popular. Por aí você já pode imaginar como sou popular com o Establishment…

É por isso que o senhor já disse, numa frase famosa – “Sou uma espécie rara: um escritor popular com causas impopulares”? Seriam, claro, causas impopulares junto ao Establishment?

Claro. Impopulares junto à classe dirigente do país, aos donos de jornais, de cadeias de TV, aos controladores dos conselhos de educação responsáveis por determinar o tipo de História americana que deve ou não ser ensinada.
O público normalmente gosta muito de mim – ao menos a parte dele capaz de ler livros. Em 1982, quando concorri a uma indicação para o Senado pela Califórnia, tive meio milhão de votos, e não gastei dinheiro algum. Se eu tivesse decidido ser político, tivesse tempo e fosse mais jovem, poderia arranjar 20 milhões de dólares para uma campanha política.
Então, como um candidato voltado a questões que realmente interessam ao povo, seria possível representar parte da América verdadeira – por exemplo, a América faminta de saber a respeito de Abraham Lincoln. Mas não seria fácil uma candidatura desse tipo arrecadar dinheiro, pois os recursos para a política vêm na maior parte do petróleo, da indústria aeroespacial, do que nós, americanos, chamamos latu sensu de “defesa” – o que, na verdade, quer dizer guerra.

O senhor pelo jeito mantém plenamente sua opinião de que a democracia americana é de faz-de-conta e hipócrita.

Sim, porque temos eleições, mas não política. Não temos política porque não temos partidos políticos. Há nos Estados Unidos um só partido com duas alas – uma se chama [Partido] Democrata, a outra Republicano. Se uma faz burradas demais, então é a vez da outra exercer o poder.
Mas ambos são financiados pelos mesmos grupos. Como resultado, metade do nosso povo não vota nas eleições. As pessoas simplesmente não aparecem para votar – e não se trata de apatia, mas de raiva. Eles sabem que votar em um ou outro não faz a menor diferença.
Além disso, o senhor vive criticando a desinformação do americano médio sobre política…
Vou lhe contar só uma historinha. Quando concorri ao Senado, em 1982, estava em Orange County [região ultraconservadora da Califórnia, perto de Los Angeles], e uma senhora se levantou, dizendo: “Senhor Vidal, tenho duas perguntas. O que eu, como uma dona de casa comum, posso fazer para combater o comunismo? E minha segunda pergunta é: o que é comunismo?” [risos].

Seu interesse pela política começou cedo, quando, praticamente adolescente, o senhor começou a trabalhar com seu avô materno, que era senador. Quanto o fato de sua família ter sempre respirado política o influenciou?

Meu avô [o advogado Thomas Pryor Gore, um dos responsáveis pela transformação do então território de Oklahoma em Estado em 1907 e, apesar de cego desde a infância, senador pelo Estado em quatro mandatos] inventou uma coisa que se chama o Estado de Oklahoma, que representou por 30 anos no Senado, e meu pai [Eugene Luther Vidal, engenheiro e empreendedor, que esteve associado à criação de três grandes companhias aéreas] integrou o primeiro dos três governos do presidente Franklin Roosevelt [1933-1937] como uma espécie de ministro da Aviação.
Acho que cada legislatura no Congresso abrigou pelo menos um membro da família de minha mãe, incluindo o atual senador Gore, do Tennessee, um primo distante. Ele já está se tornando um papabile [referia-se ao senador democrata Al Gore, e seu prognóstico segundo o qual Gore era um papabile – cardeal cotado para suceder o papa – revelou-se acertado: Gore seria vice-presidente na gestão Bill Clinton, entre 1993 e 2001, e candidato à Presidência em 2000, tendo vencido o republicano George W. Bush por mais de meio milhão de votos na votação popular, mas perdendo no Colégio Eleitoral, em eleições sobre as quais pairaram sérias suspeitas de fraude].

«O hoje militante pró-meio ambiente e Nobel da Paz Al Gore: primo de Gore Vidal que seria vice-presidente na gestão Bill Clinton, entre 1993 e 2001, e candidato à Presidência em 2000». Texto e foto de  veja.abril.com.br

Com essa imersão ancestral na política, não deve ser fácil resistir a ser político. O senhor desistiu definitivamente de ter uma carreira política?

Bem, desisti parcialmente já em 1948, quando publiquei A Cidade e o Pilar [romance cujo núcleo central é a amizade com tons homossexuais entre dois jovens que, para um deles, se transforma em obsessão na vida adulta], que causou um bocado de encrenca, embora não de forma terminal.
Falando de forma muito simples, se eu precisasse confessar – como aliás já fiz – que não gosto do cristianismo, isso significaria ter de cara pelo menos 30% dos votos violentamente contra uma candidatura em qualquer eleição. Abraham Lincoln era ateu e meteu-se em encrenca grossa porque descobriram. Aí precisou se fingir de crente.
Thomas Jefferson era ateu. No curso de 700 páginas dos Federalist Papers, as conversas e documentos que remontam a 200 anos atrás, quando se elaborou a Constituição americana, Deus é mencionado só duas vezes. Mesmo assim, nossa política é cercada pela religião de todos os lados.
Os religiosos, sobretudo os fundamentalistas, com seus programas de TV e tudo o mais, levantam bilhões de dólares e os colocam em campanhas contra o aborto e outras do tipo. Isso nos levou a ser privados da verdadeira política. Tudo o que temos são emoções: “Salvem nossas crianças!”, “Salve a vida que ainda não nasceu!”
É tudo bobagem sem nenhuma relação com assuntos de Estado.

Como o senhor se classifica politicamente? O senhor já se disse socialista, mais tarde um “liberal radical”, seja isso o que for.

Essas palavras na verdade não significam nada. Especificamente, sou anti-Império americano. Nós não temos capacidade para isso e cometemos um erro terrível após 1945, tornando-nos um Estado gendarme. A verdade é que os Estados Unidos nunca deixaram de estar em guerra.
Isso destruiu nossa economia, destruiu nossa vida política. Eu gostaria de restaurar a República Americana, esmagar o Império americano e arremessá-lo pela janela. Isso vai acontecer, de toda maneira, porque um dia nós vamos ficar sem dinheiro.
Assim, quaisquer que sejam minhas posições políticas, elas são concretas, práticas. Os americanos em geral não têm ideologia, têm religião. E alguns podem tornar-se maníacos.

Seu envolvimento político, suas posturas políticas e sua obra literária tornaram-no uma celebridade. O quanto ser uma celebridade o afeta?

[Resfolegando enquanto sobe a escada do hotel] Eu diria que sou uma celebridade de terceira geração. Já fui capa da revista Time, meu pai já esteve na capa de Time, meu avô também. Assim, sendo uma celebridade de terceira geração, essas coisas já passam a integrar seu metabolismo.
E se, além disso, você está acostumado a ter uma vida pública, e sua atividade o torna uma pessoa pública, então você se torna mesmo alguém público. A minha atividade me faz e eu sou uma pessoa pública.

O senhor tem medo da morte?

[Enfático] Não! Não se tem medo da morte! Acho que nenhuma das minhas circunvoluções cerebrais jamais temeu a morte. O medo é de morrer aos poucos. É muito desagradável. Há, naturalmente, o medo da dor física. Mas maior ainda é o medo de ficar gagá. De todo modo, a morte nada mais é do que a continuação do que ocorria antes do nascimento.

Para encerrar, voltemos à literatura. Que autores ainda o atraem a percorrer uma livraria?

Não muitos, hoje em dia. Italo Calvino seria meu favorito entre os escritores da última metade do século XX. Costumava ler [o russo de nascimento que passou a escrever em inglês Vladimir] Nabokov com prazer – gostava dele, não tanto quanto ele próprio gostava de si, mas de todo modo gostava. Leio [o britânico] Anthony Burgess – Burgess escreve a meu respeito há vinte anos, e só depois disso escrevi pela primeira vez sobre ele, resenhando suas memórias [Little Wilson and Big God, 1987] para The New York Review of Books. Resolvi dar uma mãozinha para a carreira de Burgess [risos].
Leio também Paul Bowles, James Purdy – Purdy escreve um bocado, eu tento ler. Paul não escreve mais, mas é nosso melhor contista. E Graham Greene, claro, um grande amigo. Participamos certa vez de um evento em Moscou e ele espantou os russos num fim de noite, recitando Thomas Hardy. Eu recitava John Milton. Os russos diziam: “Ah, cultura, cultura…” O que eles não perceberam é que Greene nunca leu Milton e eu nunca li Hardy. De fato, uma vasta cultura [risos]… Dos franceses, não consigo mais pensar em ninguém.

E latino-americanos?

Não quero discutir esse assunto. Caso contrário, teria problemas com editores. Se elogiar um escritor brasileiro, então, cinqüenta outros vão me odiar [risos].


Entrevista de Ricardo Seti a Gore Vidal em 1987, encontrada em veja.abril.com.br




  


 Capas de alguns dos livros escritos por Gore Vidal (1925-2012).


Democracia é o direito de escolher entre o Analgésico A 
e o Analgésico B. Mas ambos são aspirinas.
(Gore Vidal)



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