sábado, 25 de agosto de 2012

ANIMATÓGRAFO


Conto de Luiz Pacheco
(In, Expresso 09-03-1974)


Coisas boas em jornais


Luíz Pacheco (1925-2008).
Foto encontrada em puroacaso.wordpress.com


UMAS CALÇAS VERMELHAS, OUTRAS AMARROTADAS. Podia ser o titulo. Foi no que pensei primeiro. Provocante à leitura, talvez estimulante. Rápido e objectivado, resumindo a anedota num apontamento familiar sugestivo. E não. Por todas estas vantagens tornava-se cabotino. Enganador. Iam outra vez pensar que era coisa erótica, pior: pornográfica. Quando o Jogo da acção, o seu mistério (para sempre indecifrável como são as relações intimas, que se querem intimas e decisivas, das criaturas) estava muito além. Ele sentia aquilo não um entretenimento, um brinquedo frívolo de largar, deitar fora fácil depois de esventrado, despojado da sua pele aparente. Mas uma, uma preocupação obcecante. Repito: naqueles dias, coisa grave e decisiva para Ele.

Acordando pela manhã, a luz vagarosa espreitou pelas persianas descosidas e pelo largo palmo aberto a que tinham ficado levantadas. No quarto, sobre a mesa onde havia papelada ao desbarato e livros, a luz afirmou-se num súbito espanto (aquele bairro era tão pacato) que a tornou mais viva, e mais e mais atenta e viu um par de calças vermelhas boca-de-sino, talvez de mulher, sobre umas calças amarrotadas, cinzentas ou
pretas, amontoadas. Uma cadeira. Um divã à esquerda onde não havia colchão de palha ou espuma mas algumas mantas fazendo um pouco de fofo na rede entrançada muito
flexível (por lassa) do arame. Adiante, um armário (antigo guarda-vestidos?) sem porta, mais livros numa estante verde desbotada, o tudo em desordem de armazém vasculhado às pressas, quarto que não deve ter serventia imediata prática na casa, um desvio de arrumação. Dentro do armário aberto muitas maças que cheiravam e davam ao silêncio
do quarto um recolhimento vivaz, uma libertação de ares perfumados, campestres-cabana ao abandono numa distanciada colina solitária, gruta ou tugúrio de namorados furtivos.


Old School Theater, organist experience at Grand Lake Theater, Oakland, CA, USA. 
Foto encontrada em www.pingram.me.

Podia ser um bom titulo. Mas não iriam implicar por causa da cor (o vermelho)? Fácil de substituir: calças em xadrez castanho escuro e tijolo e preto, as mesmas que a Mizé usava nas suas operações de "charme" para cravanço em aflição de massas. Mas o titulo assim fica longo. Outro: ACORDANDO PELA MANHA. Mas estava tudo ainda a dormir em casa. E a gentinha do bairro não entra aqui. E se não resolvo o problema do título, como é que isto avança?
A luz, agora espertinada. Rodeou a esquina do prédio e não espectadores, puxando os olhos para a frente, não ligando à música Nesse quarto, um casal nu dormia em larga cama de madeira rangente e sem mais mobília que uma outra cama, de criança. Com guardas altas. Dormia o bébé? seria um bébé? dá-se-lha a Idade que se quiser em ficção é assim, ou sugere-se a conveniente à intriga pelo menos começa barregar suspiros, balbuciar entaramelados sons. Remexia-se às voltas. Sinais talvez da fome de papas flocos de aveia ou fosfatine rápido sem  necessidade de cozedura. O casal nu entre lençóis azulados saberemos se bordados logo que haja claridade uma carne branca lânguida abraçada quase enrolada num vulto moreno pelagem de macaco a ressonar ainda não distinguimos os corpos os sexos.
De certeza, isto: o pianista careca que tocava entre a plateia e o écran nessa altura olhava sempre para cima, fazia aquilo sempre; durante o genérico preludiara uma miscelânea de cançonetas em voga mas às primeiras imagens, na sequência das calças atiradas sobre a mesa, atacara as teclas num fortíssimo como a chamar decerto que sim, é o que me convém, também a atenção da assistência para o pormenor logo em grande plano das calças vermelhas a fita era a cores ou não era? terei que decidir a tempo, é importante; agora nesta cena, sabendo a rapariga nua na cama dedilhou uns gorjeados sentimentalismos de opereta, tremendo por dentro a lembrar-se de uma mulher que outrora. A sua desapercebida, talvez desnecessária intervenção na sala, o comentário sonoro repisado enfastiado pela rotina adquiria emotividade. Os espectadores, puxando os olhos para a frente, não ligando à música pois ninguém acho eu iria ali ouvir melodias fora de uso, estropiadas (o piano vertical era um cangalho, com o cepo rachado), mas ver casos reais e como? um drama passional, previam. A rapariga nua, só imaginada por ora mas já lhes conhecida e cobiçada dos cartazes aos lados da bilheteira, era um atractivo de mestre.

Vamos complicar isto e depressa, até aqui não se percebe nada. A vidinha das pessoas é uma trama difícil de reproduzir, mesmo para gente sensível (subtil) e atenta (interessada) quase impossível de explicar. Tentamos dar vida por escrito a alguém que apaixonadamente nos preocupa. Vamos recriando uma a uma as suas facetas, diversas e até contraditórias, e acabamos por ficar numa expectativa inquieta, às vezes inútil pois nos remete e quase limita à visão inicial do primeiro encontro. As pessoas mudam tão depressa e nós com elas, longe perto, na conivência (cumplicidade) do dia-a-dia em comum ou no silêncio da separação; as nossas sucessivas versões delas, tão mutáveis connosco, com (também) os nossos próprios íntimos ímpetos de alegria ou desespero, raiva ou esperança, etc.; um retrato instável, difuso jogo de sombras rápidas, num claro-escuro que nos entontece imagens atrás de imagens e nenhuma a definitiva. Amaríamos de olhos vendados, previlégio da juventude; fazemos um teimoso esforço para conhecer e reconhecermo-nos noutrem, caprichos da idade adulta. Longe ainda dos juízos assisados dos velhos que supõem nunca se enganar (poderem ser enganados) que rabugem odienta, que malevolência impotente e cómica afinal revelam, quanta desfaçatez e cinismo sai das suas bocas engelhadas, fulgura em olhares que o rancor (a inveja? ainda um remoto desejo?) atiça. Como ao pianista careca. Ou no que Ele teme tornar-se daqui a uns tempos.
O dia anda. Façamos mais luz, como pedia o Goethe nas vascas. Entrámos num outro quarto da casa. Um tipo ainda de olhos fechados estende a mão rogando hesitante e agarra o gargalo duma garrafa de água que está no chão acena ao lado da cama. Bebe sôfrego. Demorados goles. Tronou a pousar a garrafa, limpou os beiços com as costas das mãos, ou à dobra do lençol, talvez numa manta felpuda. Aspira com prazer o ar fresco que pela janela aberta corre o quarto todo, tenta perceber que horas serão. Conhece os ruídos da rotina do bairro: a salteado a correr às tantas da cobradora das carreiras de autocarros que mora defronte, é bonita mas a farda obriga-a a usar uma espécie de chapéu de coco esverdinhado de abas reviradas e pala curta. dá vontade de rir não há beleza que resista. E um vizinho que desconhece e tem uma carripana utilitária primeiro que pegue é uma chatice. Esse sai sempre às tantas. Oito e um quarto: pelas ruas do bairro a apitadela insistente repenicada da carrinha do infantário externato do Monte Abraão nenhuma alegoria bíblica: é como se chama o monte e tem lá uma anta. São horas. Num arremesso decidido atira as roupas da cama, bebe mais um gole grande, procura a tactear os óculos debaixo da cama. Quer recordar o que aconteceu na véspera e como está ali.

Ele vai falar sózinho ou estará a pensar? não o podemos saber. Talvez fazendo-lhe um buraquinho no alto da cabeça e ouvir. Utilizar o monólogo interior? uma voz off? manigâncias de estilo, convencionais como o resto, facílimas de o impingir à malta.
"O que é preciso é acordar vivo", disse. E de repete duas vezes o slogan optimista, a convencer-se. Ao lado. um rapazito dorme. Acorda-o em voz terna, num abanão leve, depois se fôr preciso um safanão brusco, usa o sopapo. "Horas de liceu, menino. Lavar, comer depressa e andar." Sentando-se na cama, endireita o almofadão. recosta-se, fica-se a ver o puto enfiar as roupas com gestos incertos estonteados. Despedida breve. Esgadanha com os dedos o maço de cigarros. risca um fósforo. Lembra-se então daqueles dois, o casal que dorme. E tem um risinho.
Que nem sei como classificar/qualificar/adjectivar. Aliás, problema muito mais grave me ocorreu há instantes: a fita não era para ser muda? então, como é que ele ouviu os tacões da rapariga defronte, o motor de arranque, a buzina da furgoneta? Mas isto é apenas um conto para ser publicado num jornal. Permitem-se certas liberdades. Talvez o Leitor nem tenha dado conta. Apostemos nisso.
O pianista careca embirra solenemente com o tipo que está a fumar. Acha que o tipo é estúpido, um anjolas que não percebe nada de nada. Julga-se muito mais esperto talvez porque é muito mais velho, tontarias de caruncho. Desafina de propósito, a querer dar a personagem antipática, mas cada qual é como é, sem música ou com. E a verdade é que os senhores espectadores que pagaram cinco escudos (preço único, sessões contínuas gostariam era de ver o que se passa no quarto às escuras onde está o casal nú. Não precipitemos. Não se pode dizer tudo ao mesmo tempo, a montagem dos vários episódios exige uma técnica rigorosa. Consumada. O pianista fará vibrar uma ária lírica que anuncie e acompanhe a aparição (está para breve) da rapariga, coberta por um roupão cor de vinho ou  violeta, um manto de quaresma ambíguo. malicioso quando se entreabria.


Robert Bruce acompanhando um clássico de Buster Keaton. 
Foto de robertbrucemusic.com

Ele fuma e medita (interroga-se!): "Eu que conheço tanta gente posso falar sempre de mim! O tema é o mais fácil se não único mas quando, nos calha pela frente uma personagem dúbia não terei obrigação de percebê-la para depois a dar a ver conforme me apeteça no momento a finta dos retratos pela escrita saem sempre falseados suponhamos que estou apaixonado ou apenas em fria libertinagern a querer viajar por um corpo alheio ou e o melhor é dizer logo tudo e deixar-me empurrar para onde não queria e com medo ou queria e não confesso por vergonha para meu escárnio: Que viagem! que surpresas te esperam em tal peregrinação digo comigo marcho a passo e com prudência vou muito desconfiado mas estraga-se o prazer das viagens maravilhosas recordando comparando as experiências fracassadas avancemos pois desprevenidos como da primeira vez cometendo as mesmas asneiras cumprindo o mesmo ritual."
A rapariga sai do quarto, a meio do corredor abriu a porta da casa de banho. Iluminada pelos projectores mais potentes do estúdio deixou cair o roupão aos pés para que VV,  todos possam vê-la melhor à vontade. Por instantes apenas que depois a rapariga com uma risada de adolescente (ou vedeta, cortesã sabida?) vai dar um pulinho e enrolar as ancas numa toalha que deixa ver, podemos, demorar-nos a ver o umbigo, a cintura e em baixo, joelhos e pernas esguias. tão altas como eu gosto, os tornozelos, pés bailando nus mas chinelas de plástico baratas. Plano americano: vemos agora nus: ombros, braços, seios. Axilas sem uma penugem, que ela mostra espreguiçando-se. Sobre a coluna desenvolta do pescoço, no rosto amarelado de fadiga e sono riem para nós os olhos e a boca, rnarcada com dois vincos curvos mas são rugas quase cicatrizes que sobem dos cantos do lábio superior às narinas, isolam um sorriso numa amargura súbita, que não entendemos. Um seio pequenino que se mete todo inteiro na nossa boca apetece comer ou chupar como um sorvete morno. Ao lado há outro, um invejoso que pede também. Beijos e carícias estudadas. E a servidão de um corpo que se descontrola. Desvaira. Podemos deslizar a mão pela polida suada testa, percorrer os cabelos soltos com os nossos dedos abertos, amansar ou talvez prolongar aquela ânsia fremente que lhe percebemos, descer e admirar a gracinha do umbigo. Corta.


Pianista toca música para elefantes cegos na Tailandia. 
Foto de 2011 encontrada em colunas.globorural.globo.com

Quem mais está a sofrer na sala é o pianista careca. Enquanto os outros pateiam e assobios silvam desiludidos, irritados, coitado do velho agita-se no banquinho e olha na direcção do bar com uma sede de bagaços danada. Na mente taralhouca misturam-se as memórias de corpos que conheceu e viu de perto outrora. Mulheres de carne e osso, não uma fugidia aparição estampada numa parede a onde ninguêm pode chegar e ele está farto de ver há semanas. O que o perturba não é isso. Os outros talvez encontrem mulheres à saída, vão com elas, risonhos. Mas o velho artista frustrado (aquele emprego é o fim), já não tem nada, nada, nenhuma ilusão a que se agarrar.
Ele agora lembra-se. Jantarada em Lisboa. O marido despedia-se como de costume com um pretexto qualquer. Regresso a casa de táxi com a Mizé. As crianças devia estar a dormir. Em imagens rápidas, mas muito nítidas, dessa noite tumultuosa surgiam-lhe dois olhos a fixarem-no, alargados, entre o espanto e o desejo. Talvez, outro truque. Como sabê-lo ao certo? Onde começava acabava a cumplicidade deles, que jogo era aquele? Quem era vitima de quem? talvez não passassem de sombras, num bailado ensaiado e dançado a rigor, ou tudo é improviso do acaso. Qual fazia batota se iludia ainda? Faltava-lhe perspicácia ou coragem para decidir, deslindar a meada em que se sentia outra vez envolvido. Sabia-se constrangido por
"Lá está aquele mais as suas paixonetas assolapadas!", e o pianista soltou uma grande gargalhada. Felizmente para ele (ou seria despedido) ninguêm ouviu com o barulho das cadeiras a levantar-se na plateia. Era o intervalo.
E pronto. Utilizei o receituário quase todo, uma data de efeitos já confeccionados. Deliberadamente Kitsch. Assim. No entanto, no entanto porque palpito, me assusta ainda um pouco? que iremos ver a seguir.

ANIMATÓGRAFO 
Conto de Luís Pacheco
publicado no jornal Expresso 
de 09-03-1974.






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