segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O Terceiro Homem


The Third Man de Carol Reed, 1949


«O Terceiro Homem é um filme americano ou inglês? É um filme de Carol Reed, de David O. Selznick ou de Orson Welles?» 
(João Bénard da Costa)


Carol Reed discutindo ? com Orson Welles em Viena durante 
as filmagens de O Terceiro Homem (The Third Man, 1949).

Texto de João Bénard da Costa escrito para o dicionário do Catálogo de Cinema 
Inglês (1933-1983), sobre Carol Reed e fotos da LIFE Archive. Clique para ler.

Carol Reed ouvindo Anton Karas tocar cítara, 1950.

Anton Karas.


Texto de 
João Bénard da Costa sobre O Terceiro Homem
(The Third Man), 1949 de Carol Reed


O Terceiro Homem é um filme americano ou inglês? É um filme de Carol Reed, de David O. Selznick ou de Orson Welles?

Ambas as perguntas têm resposta na ficha técnica mas ambas têm razão de ser, para além dela. Baseado numa história original de um dos maiores escritores ingleses do Século XX (Graham Greene), realizado por um inglês (Carol Reed) e oficialmente produção britânica (Korda) o filme só tem no cast três actores ingleses (Trevor Howard, Bernard Lee e Wilfrid Hyde-White, todos em papéis secundários), é protagonizado por dois célebres actores americanos (Welles e Cotten) e por uma italiana, à época em Hollywood (ALIDA VALLI) e traz a inconfundível marca que David O. Selznick imprimiu a tudo quanto produziu. Além disso, é claríssima a sua dependência e filiação em obras e géneros do final dos forties na América, aproximando-se mais dos códigos de Hollywood do que dos de Londres (embora, como adiante desenvolverei, com as notas peculiaríssimas do argumento de Greene).

Depois, houve e há uma lenda sobre o verdadeiro papel de Orson Welles nesta história. Foi só o intérprete genial de Harry Lime (personagem profundamente wellesiano) ou co-dirigiu o filme (pelo menos na parte que lhe tocava) de parceria com Carol Reed? Interrogado por Bazin, Bitsch e Domarchi numa célebre entrevista publicada nos “Cahiers du Cinéma” em 1958 (nº 87), Orson Welles admitiu que tinha tido no filme uma intervenção maior do que em Journey Into Fear (1943) (que figura em todas as filmografias, como obra sua), mas fugiu a mais pormenores “porque a questão era delicada”. “Tudo o que posso dizer é que escrevi inteiramente o papel de Harry Lime, tudo o que diz respeito a esse personagem (...) Harry Lime faz evidentemente parte da minha obra. É, de resto um personagem shakespeareano. É um parente próximo do bastardo do King John”. Quanto à realização, é mais vago: “tudo depende de quem toma as iniciativas. E não quero dar-me ares de pretender ter substituído Carol Reed que é incontestavelmente, um realizador competentíssimo, e que se parece comigo num aspecto: quando alguma coisa acontece no ‘plateau’, quando alguém tem uma ‘trouvaille’, Reed apaga-se diante do autor dessa ideia nova (...) Mas é muito delicado, para mim, falar desse filme: fui discretíssimo e não gostava nada agora de ...”.

Apesar destas meias-palavras (que efectivamente não são meias-palavras), Reed saiu logo à estacada, dizendo que se se parecia com Orson Welles nalguma coisa não era certamente no “exibicionismo” que este mais uma vez, patenteava. E reagiu fortemente à insinuação (também contida nessa entrevista) que a sequência da Grande Roda tivesse sido rodada por Welles. Graham Greene apoiou-o: o personagem de Harry Lime era dele (Greene) e Welles limitou-se a compô-lo como queria, acrescentando-lhe algumas frases (a famosa tirada sobre os relógios de cuco suíços que, de resto, Welles diz ter sido tirada de uma peça húngara).

A questão mantém-se assim um tanto ou quanto misteriosa, embora pareça líquido que Welles tenha tido uma forte influência em muitos momentos do filme, bastante “wellesianos”, desde a sua famosa “entrada” no filme na soleira da porta, descoberto pelo gato que só gostava dele, ao plano do homem dos balões, desde o diálogo da Grande Roda até alguns private jokes com Cotten (seu actor nos Citizen Kane, Ambersons, em Journey Into Fear) quando este se compara (e é comparado) a um dumb duck (cara de pato já lhe chamara George Amberson no filme dessa família).

No entanto, quando se vê Welles nas grandes angulares, nas perspectivas distorcidas, nos enquadramentos oblíquos, no uso e abuso dos grandes planos insólitos, na profundidade de campo, estamos provavelmente a ser induzidos em erro. Tudo isso já existe no interior de outro filme de Reed, Odd Man Out (46), e tem a inconfundível marca do operador Robert Krasker, outro homem que imprimiu carácter em tudo quanto fez. Era uma conversa que levaria longe e por isso me limito a deixar esboçada: Krasker, como Toland, são herdeiros directos da “escola alemã” dos anos 20 e muitos processos que a crítica francesa dos anos 50 filiou em Welles, Wyler, etc (o chamado “cinema da transparência”) tem origens mais remotas e mais complexas, a que tais grandes operadores estão muito longe de ser alheios.

Por outro lado ainda, este filme pelo menos “internacional” (muitos actores austríacos, música do austríaco Karas, desconhecido que, graças a ele, se tornou célebre e ganhou rios de dinheiro), filmado em Viena, evocara irresistivelmente muitos fantasmas nos Kordas, oriundos do império austro-húngaro. A portentosa direcção artística de Vincent Korda (que cada vez mais me parece um dos elementos capitais do filme) é obviamente a dum homem dependente da cultura centro-europeia e que conhecia Viena como as suas mãos.

Se me demorei tanto nestes aspectos, é porque este carácter híbrido do filme, esta mescla de contribuições variadas (de Reed a Welles, de Selznick a Alexander Korda, de actores de tão diversas escolas, de Krasker a Vincent Korda), em vez de desequilibrarem a obra lhe conferem grande parte do seu fascínio e do seu acerto com o décor. Na cidade de 4 zonas é um filme de 4 zonas (austro-húngaro, alemão, americano e inglês) que logo desde o princípio (jogo de plongés e contra-plongés quando Cotten sabe, pelo porteiro, da morte de Harry Lime) anda “para cima e para baixo”, no milagre do acerto dessas diversas direcções estilísticas. Por isso, O Terceiro Homem é, mesmo, no plano da história do cinema, um filme tão fascinante, de certo modo um caso único.

Mas se o espectacular êxito que a obra obteve (melhor filme inglês de 1949; top money maker do mesmo ano) se deve ao concurso de tão magistrais e diversas colaborações, deve-se também, e em não pequena parte, ao portentoso argumento de Graham Greene, a nota mais britânica desta obra.

Há uns bons trinta anos, o grande historiador Marc Ferro esteve em Lisboa e apresentou o filme na Gulbenkian, enquadrado no tema “Cinema e História”. Desenvolveu a ideia de que O Terceiro Homem era, de modo extremamente inteligente e elíptico, o primeiro filme característico da ideologia da “guerra fria”, servindo habilmente, através de apontamentos narrativos, a atitude ocidental face ao ex-aliado, nesses anos já mais do que potencial inimigo. Se tudo isso é inegavelmente verdade (Harry Lime é “o homem da zona russa”, ALIDA VALLI tenta escapar a um repatriamento para a Checoslováquia, depois do “golpe de Praga”, os vários ocupantes são perfeitamente tipificados, com a suprema ilustração na sequência da prisão de ALIDA VALLI, com a “frase perfeita” nas bocas do francês, do inglês, do americano e russo) também é verdade que o americano deste filme (“Holly Martins, que nome!”) é já o precursor do “americano tranquilo” do mesmo Greene, “The Lone Rider of Santa Fe”. “Oklahoma Kid” vindo do oeste para uma história de leste, num desfasamento ironicamente sublinhado pelo argumento. O americano não só não percebe nada, como é vítima dos vários fogos que sobre ele se abatem: Harry Lime que o chamou a Viena, Galloway que o utiliza como “peão das nicas” (puxando-lhe pela corda ética), os sinistros austríacos e até esse espantoso personagem de Hyde-White que o conduz à inesquecível e hitchcockiana sequência da conferência. Perdido no mundo da cultura (com os equívocos a que se prestava a sua profissão de escritor) quem jamais ouviu o nome de James Joyce, quem sempre trocou Winkel por “Uinkel”, está também perdido no mundo daquela cultura e nada entende dos valores que estão em causa. É “Mr. Martins from the other side”. A espantosa personagem de ALIDA VALLI (então no seu máximo esplendor) existe para fazer ressaltar que a ética linear de Cotten é tão, ou mais, repugnante do que a amoralidade de Orson Welles. Pensando friamente, Cotten é um personagem sinistro, ou, como ALIDA VALLI lhe diz, “há um nome para pessoas como você”. E Cotten bem merece aquela sequência final do cemitério, quando fica na profundidade de campo ao lado do único personagem grande do filme: ALIDA VALLI, que avança para a câmara, sem ter sequer um olhar para o homem que foi capaz de matar o melhor amigo (e por causa de quem - suprema astúcia do argumento - morreu também o único homem que o admirava, o sargento, seu fiel leitor).

O Terceiro Homem é um filme que começa e acaba num cemitério e que tem a sequência decisiva nos esgotos. Nada disso acontece, evidentemente, por acaso: na “cidade em ruínas” (historicamente em 1949, o destino de Viena era assaz incerto), são os mortos que reinam, quer os falsos quer os verdadeiros, quer os que como máscaras de morte se assumem (o barão, o médico, o romeno, o porteiro) e a merda substitui as valsas, num Danúbio bem pouco azul. Todos estão atolados nela, à excepção de VALLI, único personagem capital no filme que não desce aos abismos (esgotos) e se recusa a ser moeda de troca, mesmo quando se sabe supremamente enganada por Harry Lime. Traição por traição antes a do homem que amara do que a de Cotten, antes cair às mãos dos russos do que aceitar a protecção de Howard.

No fundo, ALIDA VALLI escolhe contra a liberdade, pela qual não está disposta a pagar qualquer preço.

Neste sentido, a ambiguidade do O Terceiro Homem é enorme. Porque se no filme se perfilam (ou se declaram) as inquietantes sombras do terror totalitário, se a obra é, ideologicamente, uma obra de propaganda anti-soviética, nenhuma complacência existe para o terceiro homem que, metaforicamente, é muito mais Cotten do que Welles. E este, na dimensão estética e shakespeariana que confere ao personagem, desequilibrou ainda mais os pratos da balança. Na Grande Roda, o extremo individualismo de Cotten não ganha aos “pontos negros” que lá de cima Welles lhe aponta.

Porque também chegou o dia em que Cotten teve que decidir suprimir um desses “pontos negros” que era o seu melhor amigo e o amante da mulher por quem, impotentemente, se apaixonou e que uma noite lhe dedicou uma belíssima lágrima.

O Terceiro Homem é ainda um filme que, historicamente, faz a transição de duas éticas e duas ordens do imaginário: a dos grandes filmes, à Selznick, dos forties e a dos grandes filmes amargos e desesperados dos fifties. Filme ainda romântico, filme já decadente, é, na sua magistral estrutura narrativa e na sua insólita disparidade formal, um monumento erguido à glória dum décor: jamais Viena foi tão onírica e tão letal como em The Third Man. Ao som da cítara, fica-nos a cicuta. Só que já nenhum justo morre dela.

Por tudo isto, em 1949 como agora, The Third Man se vê com o mesmo fascínio e apesar do seu datado formalismo (ou por causa dele?) não envelheceu uma ruga.

João Bénard da Costa
Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema
In, www.cineclubeguimaraes.org7filme.php?id=2790



(Fotos LIFE Archive)


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